Cidade das Artes - Espaço para muitas reflexões
MAJESTOSO, MAGNÍFICO e ESPLENDOROSO são adjetivos mínimos que se aplicariam a um local que só pode ser apresentado pelo uso de superlativos, mas que ainda assim se fazem insuficientes como meio de descrição, pois que suas formas e espaços jamais poderiam ser compreendidos por alguém que simplesmente ouvisse a narrativa de outrem sem jamais ter estado lá.
Tendo ido à
Cidade das Artes para conhecê-la por dentro e fotografar toda sua beleza,
convidei meu sócio – morador da Barra durante muitos anos – para ir comigo, e
fiquei admirado quando ele me confessou nunca haver pisado lá, apesar de residir por
tantos anos no condomínio (o Nova Ipanema) que fica ao lado do Terminal
Alvorada e da Cidade das Artes. Diante do meu espanto, me confessou que faz
isso como uma forma de protesto pela revolta contra os 800 milhões que a obra
custou aos cofres públicos, e se a frequentasse ele se viria compactuando com esse
ataque ao erário.
Conheço esse
sentimento de revolta muda como ninguém! Outro dia estava curtindo meu domingo
no calçadão de Icaraí quando chegou um camelô e dispôs mais de 50 frascos de um
desodorante spray, que eu compro na farmácia por R$ 15,00, sobre o banco onde
eu me sentara, anunciando que estava vendendo cada unidade a 5,00. Exatamente a
um terço do preço praticado! Não precisa nem dizer que vendeu o produto como água, que se
esgotou em poucos minutos. Apenas um único rapaz comprou 12 unidades. Eu nem me movi,
apesar de ter passado pela minha cabeça a tentação da “economia” que eu faria por
alguns meses comprando vários deles.
Explico as
aspas: acreditando economizar boa grana nos bolsos, todo mundo usa o que encontrar neles
para não deixar passar a oportunidade, e com isso alimenta os assaltos a cargas
que ocorrem todos os dias nas estradas do país. É evidente que o desodorante daquele
vendedor era produto de roubo, já que só de impostos ele teria pago mais do que
a “oferta” que fazia. A tal da “economia” então, alimenta o comércio dos
assaltos, que requer se aumente o aparato policial bem como o da segurança
privada, além do frete das cargas e o seguro de seu transporte, e uma porção de
outros custos que vêm à reboque do crime organizado. E tudo isso estoura, é
claro, nos nossos bolsos. Então economia de quê, perto do que todos pagamos
pelo resultado, naqueles poucos frascos de produto roubado que irei comprar do
camelô?
Dai porque
entendo o sentimento de meu sócio tão profundamente, e se for ouvir outras
pessoas vou conferir outras tantas razões para posturas contrárias ou a favor
da dele. Nessas situações então, procuro consultar tão somente a minha própria lógica,
aliada a bom senso e espírito crítico em relação a toda essa corrupção que nos
cerca. A minha lógica, pelo menos, me diz que quando compro os desodorantes ou
celulares roubados, mais e mais assaltos ocorrerão e todo o custo decorrente
deles serão incrementados, e o que economizei naquele momento voltarão para mim
e para todos em forma de prejuízo pelos altos custos que serão repassados aos demais produtos
de que eu e os demais fazemos uso.
Ainda que esse
mal de raiz aconteça em ambos os casos – tanto no dos desodorantes quanto no das
grandes obras – entendo que quando comparo os efeitos de uma obra de grande
porte a esses delitos menores e incorporados ao consumo diário, mesmo com os
inevitáveis desvios de grandes somas para políticos ao longo da construção, raciocino
de maneiras diferentes ao analisar os prós e os contras, o antes e o depois,
seguindo esta lógica:
- O meu consumo dos desodorantes
vai trazer algum benefício à população, além de alimentar o ciclo do crime e calar
a consciência dos que compram? Efetivamente NÃO!
- O usufruto das grandes obras
oferecidas à cidade tem capacidade para levar benefícios à toda a população? A
resposta é SIM, e aqui já começa toda uma sequência de diferenças!
- Se eu NÃO consumir o
desodorante estarei colaborando para acabar com a rede criminosa? Sim! Com toda
certeza, e a razão é simples: sem mercado para comprar, não tem assaltante para
vender!
- Mas se eu NÃO fizer uso das grandes
obras disponibilizadas à população eu vou impedir que outras obras gerem novos
assaltos ao erário público? Definitivamente NÃO! Eles acontecem desde a
construção das mais antigas mega-obras do planeta – das pirâmides do Egito ao
Coliseu romano – e isso não deixará de acontecer em momento algum da história
da humanidade.
Assim, a diferença maior está na natureza da atividade e no sentido dado ao resultado quando já é
fato consumado, no meu modesto entender, por exemplo: o frasco vazio do desodorante
ou o celular descartado na natureza só irão produzir mais danos à saúde do
planeta e das pessoas mas, no caso das obras, o malefício maior será justamente o
descarte (no caso, não seguir com o uso), posto que elas já estão prontas para um uso que se pretende definitivo,
e onde o tempo atuará para que seus benefícios superem os prejuízos com a
construção, justamente se não a condenarmos ao abandono. Se direcionado todo o
bem que se puder obter delas em benefício das pessoas, esse é o caminho para
transformar em lucro o que começou como prejuízo, mas prejuízo esse que só
aumentará se deixar-se de lhe dar uso adequado ou, simplesmente, esquecer-se de
que ele está ali ou deixar que tudo se acabe pelo desuso, com a consequente perda
total de todo o custo gerado!
Vejamos um exemplo prático disso
tudo aplicado ao caso da Cidade das Artes:
Apenas na primeira visita já pude
conferir uma série de atividades de grande alcance social em pleno
desenvolvimento ali: nas duas exposições que visitamos, o tema delas era o
combate às diferenças, com obras expostas pelo curador que reuniram crianças
das camadas mais abastadas com outras oriundas de favelas para compartilhar a
mesma tela, criada a partir da visão de suas respectivas realidades. Numa outra
exposição intitulada “O Muro”, a ideia do curador foi denunciar a divisão
desses dois mundos, com o “muro” impedindo que a infância abastada pudesse
saber o que ocorre com os que sofrem nas favelas e a infância desfavorecida era
mantida, por conta dele, bem distante das regalias levadas aos primeiros.
Nossa atenção
foi despertada também para um grande número de carros de luxo guardados por seguranças
no estacionamento, para que seus proprietários comparecessem a um lançamento de
jóias realizado por grandes joalheiros de marcas famosas. Já no térreo, em
ambiente fascinante e acolhedor, uma centena de “stands” muito bem montados
eram ocupados por pequenos produtores de todos os tipos para exposição e venda
de seus produtos artesanais e de grande qualidade.
Agora pensem nas
chances que essas crianças das comunidades pobres teriam, ou com que espaço os
pequenos produtores poderiam contar para escoar e produzir mais produtos, caso
não contassem com iniciativas como essas acontecendo em espaços nobres como a
Cidade das Artes, atraindo para si os olhares de visitantes do mundo inteiro?
Quando falo sobre as diferenças brutais do comércio particular e de uma grande
obra é que enquanto uma só agrava o problema, a outra o irá diluindo ao
longo do tempo até que o benefício aconteça em escala muito maior do que o prejuízo
inicial levado ao mesmo público, e justamente por efeito do uso continuado e
efetivo do resultado, que pode tanto se transformar em um legado de imenso
alcance por séculos, quando ninguém mais é atingido pelos primeiros danos e só
os benefícios se mostram como o patrimônio levado a todos, indistintamente.
Basta pensar no que seria do mundo de hoje sem as pirâmides, o Coliseu, o
Cristo Redentor, a torre Eiffel, a ponto Rio-Niterói ou a grande muralha da
China. Passa pela cabeça de alguém que muita gente encheu os bolsos com elas, e
que até muitos tenham morrido para pô-las de pé?
Assim, o que minimamente
podemos fazer, tanto para reduzir os prejuízos quanto para honrar a memória das
vítimas, é dar o uso mais nobre que se puder ao legado, deixando ao tempo a
incumbência de apagar todos os vestígios dos sacrifícios que tiverem gerado. Obras
megalômanas sempre poderão ser transformadas igualmente em benefícios
megalômanos, justamente por não receberem tratamento de “elefantes brancos” e
se buscar extrair delas tudo o que efetivamente podem oferecer enquanto
benefício real à população, e que pagou imposto o bastante para que saissem do papel.
Sua perenidade – em contraste com a efemeridade das cargas roubadas e levadas
ao comércio clandestino – podem converter em benefício qualquer desvio ocorrido durante o
período de construção, e por essa ótica é que precisam ser valorizadas,
frequentadas e prestigiadas para que isso aconteça cada vez mais rapidamente.
Trazem ainda embutida
a vantagem extra de seus benefícios poderem ser levados ad-eternum às futuras gerações, contemplando mais e mais pessoas, poder esse que o comércio ilegal jamais
poderia oferecer, já que seu pretenso benefício é egoísta, mesquinho e limitado
apenas às pessoas direta e momentaneamente envolvidas no processo pontual de
comercialização, onde apenas os resíduos nocivos a todos é que permanecerão
após cessada a atividade.
Assim, se é
que minha lógica se aplique a outros casos semelhantes, não será a negação de
frequentar o legado deixado – seja em nome dos nossos escrúpulos ou como forma
de protesto – que estaremos contribuindo para que outros maus políticos surjam ou
que novos desvios aconteçam. E isso também não fará qualquer diferença no fato
de serem ou não punidos por seus crimes. O que importa ao fim do entendimento é
que a sociedade continue sendo aperfeiçoada e os benefícios se multipliquem em
progressão geométrica, independente da motivação ilícita que lhes deram origem.
Quando atingirmos um patamar evolutivo em que a política suja tenha sido
contida, e tenhamos governantes que zelem realmente pela população que os
escolheu para seus postos, essas obras ainda estarão lá para oferecer-lhes toda
a estrutura de que precisarão para levar mais e mais respostas aos cidadãos dos
quais precisarão cuidar.
E contra o
argumento menor dos 800 milhões gastos com um palácio supostamente elitista para produzir
arte, tendo sido melhor se toda essa fortuna tivesse sido direcionada à saúde e
à educação, eu faria uso de um argumento próximo do ensinamento bíblico de
que “nem só de pão vive o homem”, sendo necessário lembrar que beleza, arte e
cultura são tão importantes à alma humana e à forma de se olhar e respeitar o
mundo quanto a saúde o é para o corpo, e ainda como a educação abre portas para
o futuro de todos. Dou tanto crédito a essa convicção que não descarto o fato
de que a saúde física e mental que têm me acompanhado ao longo de todos esses
anos não é obra do acaso, tendo tudo a ver com a forma como olho para todo o
belo que consigo enxergar ao meu redor, pois que me alimentam o espírito para
ir ao encontro delas e impõem barreiras às limitações físicas que me deixariam impedido de vê-las.
Não é à toa,
portanto, a resistência desenvolvida contra os que pensam apenas em si mesmos
ao destruir o que é de todos, e tê-los como os mais detestáveis inimigos não só
meus, mas de toda a humanidade, pois que atentam contra a dignidade, a alegria
pela vida, e o direito que todos tem à descoberta, herança e usufruto de tudo o
que efetivamente chega para produzir saúde física e mental, manter o sentido de
pertencimento, de conexão com o mundo, de respirar cultura e todo um sentimento
de ser parte integrante e indissociável do contexto onde se está inserido. Tudo
isso trocado em apenas duas palavras se resume, para não fugir à principal
reivindicação destes anos, à SAÚDE e à EDUCAÇÃO de uma forma preventiva e muito
mais abrangente do que apenas ser socorrido em hospitais quando a sociedade já está doente pela vida que leva,
ou ter acesso à escola sem sequer desenvolver sensibilidade mínima para entender
a interdependência de cada ação sua com a responsabilidade sobre tudo o que se vislumbra
em torno dela!
A idéia de que
não se pode pensar em nada antes de um sistema de saúde e educacional que
funcione para se proporcionar um tratamento digno à população é uma visão
canhestra e até ingênua de uma esquerda ativista cuja realidade por si mesma desmente. Se assim
fosse não haveria um êxodo permanente de cubanos cruzando a Baía dos Porcos
para trocar essa vantagem por uma vida de clandestinidade nos Estados Unidos,
onde sequer terão acesso a tais benefícios e nem direito pleno à sua cidadania.
Fica
claramente demonstrado que, antes de pensar apenas no momento em que estarão
doentes, ou na possibilidade de sucesso material pelo estudo formal puro e
simples, as pessoas preferem estar onde conseguem se sentir felizes. Apenas ter
médicos para mazelas físicas ou conseguir posição no mercado por terem tido
acesso ao estudo, por si só não se mostra o bastante para tornar ninguém feliz.
Isso é tão verdadeiro que Maslow, na década de 40, já colocava a
auto-realização no topo de sua pirâmide das necessidades humanas, bem distante
dos recursos materiais que se acreditava indispensáveis até então, e Herzberg
incluiu o dinheiro no rol das necessidades apenas higiênicas – a daquelas que,
quando faltam, tornam pessoas insatisfeitas, mas que não são o bastante para torna-las efetivamente felizes – que ele chamou de “motivacionais” – como reconhecimento e realização
pessoal e que, simplificando, nada mais é do que seu sentimento interno de
felicidade.
Faz-se necessário repensar então o sentido atribuído ao ambiente em que se vive - suas belezas e seus espaços - tão vitais para fazer com que os indivíduos se sintam parte integrante deles, como algo que vai bem além da medicina e da instrução, ainda que não as substitua, mas capazes de fornecer alimento à alma para, em muitos casos, até se passar uma vida inteira sem ser preciso recorrer a médicos e nem ser um empresário de sucesso para entender o sentido da felicidade.
O Muro
Comentários
Postar um comentário